O homem será feito em laboratório.
Será tão perfeito como no antigório.
Rirá como gente, beberá cerveja deliciadamente.
Caçará narceja e bicho do mato.
Jogará no bicho, tirará retrato com o maior capricho.
Usará bermuda e gola roulée.
Queimará arruda indo ao canjerê, e do não-objecto
fará escultura. Será neoconcreto se houver censura.
Ganhará dinheiro e muitos diplomas, fino cavalheiro
em noventa idiomas. Chegará a Marte em seu cavalinho
de ir a toda parte mesmo sem caminho.
O homem será feito em laboratório muito mais perfeito
do que no antigório. Dispensa-se amor, ternura ou desejo.
Seja como for (até num bocejo) salta da retorta um senhor garoto.
Vai abrindo a porta com riso maroto:
«Nove meses, eu?
Nem nove minutos.»
Quem já concebeu
melhores produtos?
A dor não preside sua gestação.
Seu nascer elide o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exacto, medido, bem posto:
o justo formato, o standard do rosto.
Duzentos modelos, todos atraentes. (Escolher, ao vê-los, nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa a todos atende.
Perdão: acabou-se a época dos pais.
Quem comia doce já não come mais.
Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho
de outro universo. Sua independência é total: sem marca
de família, vence a lei do patriarca.
Liberto da herança de sangue ou de afecto, desconhece a aliança
de avô com seu neto. Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio,
e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não?
pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório
sem qualquer defeito como no antigório, acabou com o Homem. Bem feito.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Versiprosa'
Nenhum comentário:
Postar um comentário
deixe sua opinião,isso é muito importante para nós.